Ruílhe
- A Nossa História
Encontra-se a cerca de 10 km do concelho
de Braga, na margem esquerda do rio Este.
A instituição da paróquia é anterior ao século XIII, uma vez que nos inícios
desses séculos aparece como uma das freguesias inicias do julgado ou terra
medieval do Penafiel “de juxta Bastuzo” (isto é, Penafiel de Bastuço).
A própria toponímia indica a antiguidade
do seu povoamento, já referenciado na época da romanização. Talvez se
relacionem com esta antiguidade os topónimos Arentim, evidente genitivo
medieval, significando eventualmente a “villa”: silva, talvez de silvana,
“villa” de silvanus; Bagoim; Noverci (séc. XVIII), etc,
topónimos de origem germânica também não faltam, estando entre eles o
principal, Ruílhe (em 1220, Ruilli, em 1258 Royli) que
corresponde ao genitivo do nome pessoal hipotético Rodellus, “que
tomou o lugar de um nome hipocorístico Rodila” (segundo J. Piel), aludindo
pois, a uma Rodilli “villa” ou semelhante.
Nesta freguesia foi construída a Igreja de
S. Paio, cuja invocação não será anterior ao século X. Outro antigo genitivo
toponímico desta freguesia é Tidim“villa”, talvez também de um
bárbaro germânico ou conquistador neo-gótico.
A situação da população desta freguesia,
nos princípios do séc. XIII, era ainda de pouca expressão. Havia aqui doze
casais enviados pela coroa, em 1220. As condições destes colonos reguengueiros
eram, pois, muito duras e pesadas. Silvã é tratada então de “villa”,
aludindo-se a um palácio que existira neste lugar para pousa do rei, conforme
os inquéritos de 1220.
A igreja local era então da coroa. Em
1290, esta freguesia era toda de Afonso Rodrigues, fidalgo a quem o rei a havia
dado em troca.
A Servidão de Cunha e Ruílhe (verdade ou "história da
carochinha"?)
Há uma velha tradição vimaranense, que
envolve as freguesias de S. Miguel de Cunha e S. Paio de Ruilhe,
atualmente pertencentes ao concelho de Braga, que tem gerado alguma discussão, por se situar algures entre a história e o mito. As dúvidas
que persistem em relação a esta tradição não dizem respeito à sua existência,
que está demonstrada, mas quanto à sua origem, que carece de ser esclarecida.
A tradição, que se cumpriu até ao ano de
1743, conta-se assim:
Durante séculos, três moradores daquelas
freguesias (dois de Cunha e um de Ruilhe) vinham, sete vezes no ano, varrer a
praça, o terreiro e o açougue de Guimarães. Esta era uma servidão a que todos
os homens daquelas freguesias estavam obrigados, enquanto lá residissem, sendo
cumprida rotativamente entre eles. Acontecia nas vésperas das sete festas do
ano: Páscoa, Espírito Santo, Corpo de Deus, São João, Santa Isabel, Domingo do
Advento e Nossa Senhora de Agosto. Aqueles a quem calhava em sorte o
cumprimento desta servidão dirigiam-se à Câmara, onde eram forçados a envergar
o trajo próprio da função: ali lhes davam uma opa vermelha ou barrete
da mesma cor, de que caía uma ponta até ao talabarte, e a espada levavam e a
metiam em um cinto armado à esquerda e os faziam descalçar um pé ficando com o
outro calçado pondo-lhe ao cinto o sapato e meia que tinham descalçado.
Como ferramenta, cada um levava sua vassoura de giestas. As ruas eram varridas
sob a vigilância permanente de um guarda nomeado para o efeito, no meio da
algazarra de grupos de rapazes que escarneciam dos varredores forçados.
Cumprida a humilhação pública, os três penitentes devolviam à Câmara o barrete
e restantes adereços que foram forçados a utilizar, dando-se por cumprido o
tributo.
A propósito da origem da servidão dos
moradores de Cunha e de Ruilhe, corre em Guimarães, há vários séculos (já
corria no início do século XVIII), uma tradição que o insuspeito historiador
Alfredo Pimenta classificou como história da carochinha. Aqui fica,
como o Padre António José Ferreira Caldas a descreveu em finais do século XIX
"Uma das mais notáveis e curiosas honrarias concedidas a esta vila foi,
sem dúvida, a que lhe dera D. João I, depois da tomada de Ceuta.
Para a defesa desta praça em África, dividiu el-rei as estâncias da muralha,
pelos moradores das cidades e vilas, que o acompanharam nesta empresa:
acontecendo ficar a gente de Guimarães e Barcelos em estâncias seguidas, onde o
combate com os mouros foi mais cruel e renhido.
Atemorizados os barcelenses pelo furor
mauritano, desamparam o seu posto e fogem; mas logo os filhos de Guimarães, com
o peito abrasado no amor da pátria, se dividem em dois terços, ocupando com um
deles a estância abandonada, e defendendo-a até à vitória com inexcedível
coragem.
Para castigar a fragilidade de uns,
premiando ao mesmo tempo a heroicidade dos outros, mandou D. João I, que de
então para sempre dois vereadores de Barcelos, com um barrete vermelho na
cabeça, banda ao ombro da mesma cor, espada à cinta, vassoura de giesta em
punho, e com um pé calçado e outro descalço, viessem em todas as vésperas das
festas da câmara varrer as praças e os açougues de Guimarães; entregando depois
o barrete e a banda aos nossos vereadores, dando-lhes assim satisfação de tão
tributo, que pagaram a esta vila por muitos anos.
Não havendo já em Barcelos quem se
prestasse a servir de câmara, fez o duque de Bragança D. Jaime com a câmara e
povo de Guimarães, um contrato solene, pelo qual ficou obrigado a dar do termo
da vila de Barcelos, de que era senhor, as freguesias de Cunha e Ruilhe, para
que estas - anexadas ao termo de Guimarães - dessem todos os anos dois homens,
que viessem aqui satisfazer tão pesado encargo."
A tradição do tributo da vassoura a que
estavam obrigados os moradores de Cunha e Ruilhe é contada com algumas
variantes. Segundo uma delas, seriam nove, e não sete vezes ao ano que os
vereadores de Barcelos e, depois, aqueles a quem a obrigação foi transmitida,
viriam varrer as ruas de Guimarães. De acordo com outra versão, os
vereadores-varredores seriam dois, de cada vez, e não três. Por um lado, terá
sido D. Afonso, bastardo do rei D. João I e primeiro Duque de Bragança
(1442-1461), o responsável pela transferência da obrigação vexatória dos
vereadores de Barcelos para os vizinhos das freguesias de Cunha e Ruilhe que,
para o efeito, foram transferidas para o Concelho de Guimarães; por outro, terá
sido o quarto duque, D. Jaime (1500-1532).
Uma outra variante indica que a transferência não terá sido efectuada
directamente da vila de Barcelos para aquelas duas freguesias, tendo sido a
servidão transmitida, em primeiro lugar, à freguesia barcelense de Santa
Eugénia do Rio Covo, sendo depois transferida para Cunha e Ruilhe. Uma passagem
da Corografia Portugueza do Padre Carvalho da Costa diz algo
diferente, quando trata da freguesia de Santa Eugénia:
"Dizem foi antigamente couto de
Guimarães e por castigo, e privilégio que tinham eram os moradores obrigados a
ir-lhe varrer as ruas; mas sendo mui prejudicial a Barcelos haver aqui este
couto tão seu vizinho, em que acolhiam seus criminosos, donde saíam a
roubá-los, lhes deram em troca as duas freguesias de Cunha e Ruilhe com a mesma
obrigação".
Esta citação da obra de Carvalho da Costa contribuirá, como veremos, para a
compreensão desta tradição.
Uma das referências que costumam ser
citadas para dar crédito à tradição da servidão de Barcelos e ao papel que o
Duque D. Jaime terá tido para a relevar, é o seguinte excerto do Tratado
Histórico, Catálogo dos Priores do Real Mosteiro da Costa (Guimarães)
CAP. IV
Vida do Duque D. Jaime
[…]
Aos moradores da sua Vila de Barcelos
livrou da injuriosa servidão de virem dois vereadores da mesma Vila em certas
festividades do ano varrer a Praça e Açougues da Vila de Guimarães, para o que
fez tirar do termo da Vila de Barcelos as freguesias de Cunha e Ruilhe, que se
uniram ao termo de Guimarães com o encargo daquela servidão.
[…]
A tradição que associa a servidão da
vassoura, a que estavam obrigados os moradores de Cunha e de Ruilhe, ao
comportamento da hoste de Barcelos na tomada de Ceuta, carece de base histórica
(até porque, tanto quanto é possível saber-se, na conquista daquela praça
marroquina não participou qualquer hoste de Barcelos…). Todavia, esta tradição
tem já vários séculos de caminho. Se Alfredo Pimenta a classificou como
um história da carochinha, em tempos recentes, no final do século
XX, foi-lhe acrescentada uma nota suplementar de fantasia, numa tentativa, algo
ingénua, de expurgar a carga pejorativa da tradição das duas caras que anda
associada à estátua do Guimarães, que hoje podemos ver a encimar a fachada
voltada para a praça da Oliveira dos antigos Paços do Concelho. Segundo essa
versão, as duas caras seriam, nem mais nem menos, as duas frentes de batalha
que os de Guimarães teriam tido que sustentar na conquista de Ceuta - a que
lhes cabia e aquela de que os de Barcelos teriam desertado. É fácil de
demonstrar, como já se fez antes, que esta história não
tem qualquer sustentabilidade.
Pela parte que me toca, fantasia por
fantasia, acho bem mais interessante esta versão da lenda das duas caras.
A servidão da vassoura a que estavam obrigados os moradores de Cunha e de
Ruilhe é um facto histórico, demonstrado por diversos documentos, como por
exemplo o Tombo de 1735, no qual são descritos os bens pertencentes ao Senado
da Câmara de Guimarães. Entre eles, estavam os barretes e as faixas com que
eram investidos os varredores que vinham cumprir a penitência:
Barretes de Cunha e Ruilhe — Tem mais o Senado que se guarda
na casa dele três barretes de rabo comprido feitos à mourisca e três faixas
tudo de baeta vermelha com que os moradores das duas freguesias de S. Miguel de
Cunha e de São Paio de Ruilhe cada uns no seu giro se preparam e compõem quando
vêm varrer a praça e terreiro de Nossa Senhora da Oliveira e açougues desta
vila nas festas da Câmara cuja varredura fazem nos próprios dias das mesmas
festas pela manhã com um pé descalço e o outro calçado e a espada metida na
faixa que cada um ata pela sua cinta às avessas pela parte esquerda e o barrete
metido na cabeça com o rabo estendido pelas costas abaixo, e nesta forma é que
varrem.
Quanto à relação da servidão da vassoura
com feitos e mal feitos de Guimarães e Barcelos aquando da conquista de Ceuta,
não faltam referências nos textos que tratam da história de Guimarães. Assim
sucedeu com João de Meira, que, numa conferência que ficaria inédita aquando do
seu falecimento, alude ao assunto com expressões de dúvida (parece, diz a
lenda):
"Na tomada de Ceuta o concelho parece
ter-se representado gloriosamente. O contingente de Guimarães, diz a lenda,
combatendo ao lado das tropas de Barcelos no assalto da praça, atacou com
valentia o lugar que lhe coube em sorte, e ainda acudiu esforçadamente ao lanço
que os barcelenses abandonaram, ganhando por esse feito o privilégio de as ruas
da vila serem varridas na véspera de certas solenidades pelos vereadores de
Barcelos num traje vexatório e grotesco."
Alfredo Pimenta, historiador que dá o nome
ao Arquivo Municipal de Guimarães, de que foi o primeiro director, e que foi
Director do Arquivo Nacional da Torre do Tombo até à data do seu falecimento,
no ano de 1950, manifestou, em 1940, profundas reservas à tradição que
associava a conquista de Ceuta quanto à tradição da servidão a que estiveram
obrigados os moradores de Cunha e Ruilhe:
"A propósito de Ceuta, corre nos
monógrafos, e o próprio João de Meira lhe deu crédito, uma história que nos
parece história da carochinha.
(…)
Nem o cronista da tomada de Ceuta narra a
falência da bravura dos homens de Barcelos, nem ninguém viu a Sentença de D.
João I.
Mas a servidão existia — isso é inegável. O que se ignora é a sua origem
verdadeira.
Nem se entende que sendo ela destinada a
castigar a fraqueza ou a cobardia dos barcelenses, o Duque D. Jaime pudesse
encabeçá-la em duas freguesias que alienou, e passou para o termo de Guimarães,
dando essa transferência em resultado ficarem os de Barcelos isentos da pena, e
os de Guimarães com ela às costas; porque as freguesias de S. Miguel de Cunha e
de S. Paio de Ruilhe, sendo barcelenses até o dia da transacção, passaram a ser
vimaranenses, depois dela. Em qualquer caso, o que devia ser suportado pelos
moradores de Barcelos, ou seus vereadores, passou a sê-lo pelos fregueses de
Ruilhe e de Cunha,não enquanto barcelenses, mas depois de entrarem no termo de
Guimarães.
Acresce ainda, e não é pouco, que desconheço a data da incorporação das duas
freguesias de S. Miguel de Cunha e de S. Paio de Ruilhe no termo de Barcelos —
para que o Duque D. Jaime possa separá-las dele.
Porque muito bem as conheci como fazendo
parte do termo de Guimarães, anteriormente.
Efectivamente na Inquirição que se
tirou sobre as honrras e devassos dos julgados de Guimarãis... e suas
freguesias quintaans e casões, por ordem de D. Diniz, em 13 de Julho
de 1288, vejo as freguesias de S. Miguel de Cunha e S. Paio de Ruilhe. (Vim.
Mon. Hist., pág. 351 e 358).
Embora não seja insólito o alargamento e encurtamento
dos termos, convinha conhecer-se quando foi que as duas freguesias, hoje
incorporadas no concelho de Braga, entraram no termo de Barcelos.
Em conclusão: até melhor prova de que o diz-se e o «se acaso
havia» apontados na Provisão de D. João V, deixo sob reserva a tal história de
Ceuta como origem da servidão falada."
Para esclarecermos as dúvidas acerca da servidão da vassoura a que estavam
condenados os moradores de Cunha e de Ruilhe e a sua suposta relação com
Barcelos e a conquista de Ceuta, teremos que reler os documentos. Nas
inquirições gerais de D. Dinis, iniciadas no ano de 1288, no capítulo da
"inquiriçom que se tirou sobre as honrras e deuassos dos julgados de
guimarãees [e Freitas] e suas freguisias quintaans e casaes", encontramos
descritas aquelas duas freguesias:
S. Miguel de Cunha
"Item freguesia de sam migell de cuia
dizem as testemunhas que a meyadade de toda a villa e del Rey Reguenga e a
meyadade he de ffilhos dalgo e de moesteiros e de Igrejas a que as mandarom os
filhos dalguo – em esta meyadade dos filhos dalgo som quatro quimtaams que som
de filhos e netos de lourenço ffernamdez e virom nas honrradas desque se
acordam as testemunhas e per Razam destas quintaams trazem por honrra toda a
villa assy ho Reguengo del Rey como todo ho all que nom emtra hy moordomo do
carritell nem peita voz nem coyma saluo que entra hy o moordomo do pam polas
teigas. — Estee como estaa –"
S. Paio de Ruilhe
"Item fregueja de sam payo de Roilhe
nom ha hy honrra nem huuma outra e he toda daffonsso Rodriguez ca lho deu el
Rey em escambho – Estee como estaa–"
[Guimarães,
João Gomes de Oliveira, Vimaranis Monumenta Historica, pp. p. 347, 351 e 358]
Ou seja: Cunha e Ruilhe, que, em 1220,
como informa o Abade de Tagilde, pertenciam ao Julgado de Penafiel (Terra de
Penafiel de Bastuço, que hoje pertence ao concelho de Barcelos, em zona
limítrofe de Cunha e Ruilhe, actualmente integradas no concelho de Braga), no
final do século XIII já faziam parte do termo do concelho de Guimarães. A
conquista de Ceuta apenas acontecerá mais de um século mais tarde, em
1415.
A referência mais antiga à servidão da vassoura que conhecemos foi escrita em
1512 por Mestre António, cirurgião de Guimarães, no seu Tratado sobre a
província de Entre-Douro-e-Minho e suas abundâncias, que permaneceu inédito
durante mais de quatro séculos:
"E assim os desta comarca andaram
vinte e tantos anos nas guerras de Castela pelos quais serviços lhe deram
muitos privilégios estremadamente à vila de Guimarães que lhe deram o título de
mui nobre e sempre leal, e o castelo castelo de Guimarães nunca se acha ser
tomado de mouros, os que fugiam das guerras de outras partes foram ajuntados em
certos lugares como degredados e foram dados como tributários à dita vila de
Guimarães para sempre como hoje em dia as de Cunha e Ruilhe, que são daqueles
vêm cada ano varrer açougues e praças e ruas da vila de Guimarães e para outras
quaisquer coisas que os mandem chamar, posto que vivem quatro léguas de
Guimarães e não são do seu termo e assim eram os de Fão e Esposende se não o
duque Dom Afonso que Deus tem por muitos serviços que lhe fizeram os tirou da
dita sujeição e os deu a Barcelos por termo por que viviam mais perto dele e
todos os privilégios principais que depois foram outorgados pelos reis a Lisboa
e aos outros lugares do reino dessem eles assim que pela maneira que os termos
outorgados a nossa mui nobre e sempre leal vila de Guimarães."
[Luciano Ribeiro, "Uma
descrição de Entre Douro e Minho por Mestre António", Boletim
Cultural da Câmara Municipal do Porto, vol. 23, fasc. 3-4, Porto, 1959, p.
459.]
Note-se que Mestre António não faz
qualquer referência à transmissão de Barcelos para Guimarães das freguesias de
Cunha e Ruilhe, com a obrigação de os seus moradores assumirem a servidão
vexatória a que estariam sujeitos os moradores ou, conforme as versões, os
vereadores barcelenses. Por outro lado, indica que Fão e Esposende teriam
idêntica sujeição, tendo sido passadas pelo primeiro Duque de Bragança, D.
João, do concelho de Guimarães para o de Barcelos, por ficarem "mais perto
dele". Mestre António é claro quanto à origem desta costumeira:
aquelas freguesias eram lugares onde os desertores de guerras foram degredados
e "dados como tributários à dita vila de Guimarães", não fazendo
qualquer referência a Ceuta. Por outro lado, com base neste documento,
podemos concluir pela falta de consistência da tradição de que teria sido o
Duque D. Jaime a entregar a Guimarães as freguesias de Cunha e Ruilhe, para
libertar os de Barcelos da servidão a que estariam sujeitos. A existir, Mestre
António não a poderia ignorar: escrevendo o seu Tratado em
1512, teria sido contemporâneo da suposta transferência, uma vez que D. Jaime
apenas chegou a Duque de Bragança no ano de 1500. Por outro
lado, note-se que, havendo uma versão desta tradição que diz que foi
o Duque D. Afonso o responsável pela transferência daquelas freguesias de
Barcelos para Guimarães, na obra de Mestre António apensas se encontra notícia
do movimento em sentido contrário das freguesia de Fão e Esposende.
O documento mais antigo em que se encontra
referência a Ceuta e a Barcelos na origem da servidão da vassoura a que estavam
sujeitos os moradores das freguesias de Cunha e de Ruilhe são as Memórias
Ressuscitadas da Antiga Guimarães, escritas entre finais do século XVII e
os primeiros anos do século XVIII, mas que ficaram inéditas até 1845. Apesar de
inéditas, as Memórias do Padre Torcato foram lidas por vários autores, que as
utilizaram sem citar a fonte. O exemplo mais acabado dos plágios de que foi
alvo encontrámo-lo da Corografia do Padre Carvalho da Costa,
onde foram vertidos largos trechos da obra do monógrafo vimaranense. Assim
sucede, por exemplo, com o texto que se segue, onde surgem algumas novidades a
propósito da suposta servidão de Barcelos a Guimarães:
"Para coroa de todos os privilégios desta vila, farei menção de uma
Provisão de el-rei D. João o 1.°, à qual em nenhuma parte há outra semelhante.
Quando este senhor tomou a cidade de Ceuta em 1414*, repartiu as estâncias das
muralhas pelos moradores das cidades, e vilas que o acompanharam nesta empresa:
sentidos os Mouros da perda de sua cidade, se juntaram em grande número, e
vieram logo sobre ela, e fizeram o maior ataque pela estância que guardava a
gente de Barcelos: ficaram estes tão assustados, que fugiram, desamparando aos
Mouros o lugar que lhe estava balizado. Os moradores de Guimarães, que
guardavam a estância contígua se dividiram logo em dois terços, e com um foram
lançar fora os Muros do muro que já ocupavam, e com o outro ficaram defendendo
o lugar que se lhe tinha nomeado.
Agradeceu el-rei esta valorosa acção com
lhes passar uma Provisão em 1517**, para que os moradores da vila de Barcelos
viessem nas vésperas de todas as festas que a câmara desta vila costuma
celebrar, varrer-lhe a Praça Maior, Padrão, e Açougues, com um barrete vermelho
na cabeça, e uma banda ao ombro, da mesma cor, e a espada à cinta, e um pé
calçado, e outro descalço, com vassouras de giesta que traziam de suas casas,
para fazerem esta limpeza. Acabada ela, entravam na câmara, aonde os esperavam
os ministros, e em livro particular lhes faziam seus registos, e se faltava
algum sem mandar certidão de causa justa, era condenado em seis mil reis para
os encargos do concelho. Continuaram os moradores de Barcelos nesta servidão
mais de sessenta anos, até que não havendo quem a quisesse habitar, veio o
duque de Bragança D. Jaime, senhor da dita vila pedir à câmara, e povo desta
vila quisessem fazer com ele um contrato, em que lhe largaria as freguesias de
Cunhe, e Avinhe*** para que os moradores delas continuassem aquela servidão:
porque aquela sua vila se ia despovoando da nobreza que tinha: e como seu
requerimento era justo se fez o contrato, que se guarda no cartório da câmara,
e assim os moradores das ditas freguesias ainda continuam a limpeza dita do
mesmo modo. Bem trabalhou o doutor Gabriel Pereira de Castro para livrar as
ditas duas freguesias, por ter nelas certos caseiros que faltaram à servidão, e
que haviam sido condenados: saiu a sentença contra os ditos caseiros, a qual se
guarda no cartório da câmara."
[Torcato
Peixoto de Azevedo (Padre), Memórias Ressuscitadas da Antiga Guimarães,
Porto, Typographia da Revista, 1845, pp. 413-414]
*
Erro: a conquista de Ceuta aconteceu em 1415.
**
Gralha da edição de 1845: deve ler-se 1417.
***
Gralha da edição de 1845: deve ler-se Ruinhe, aliás, Ruilhe.
Note-se que o Padre Torcato afirma que
teria sido o duque D. Jaime a contratar com a Câmara de Guimarães a
transferência de Cunha e Ruilhe de Barcelos para Guimarães, com o encargo de
assumirem à sua conta as obrigações da servidão. Como já vimos, Mestre António,
que seria necessariamente contemporâneo de tal acontecimento, não se lhe
refere.
Fonte:
António Amaro das Neves in www.araduca.blogspot.pt
António
Amaro das Neves – Abril 10, 2018
E chegamos ao fim de
um roteiro que começamos a percorrer no dia 18 de Janeiro. Com Ruílhe, ficam
publicadas as Memórias Paroquias do concelho de Guimarães em 1758.
Tal como na de Cunha, na memória de Ruílhe
há referência à tradição a que estavam obrigados moradores daquelas freguesias
que se consumava na "ignominiosa acção de irem à dita vila, sete vezes ao
ano, varrerem o terreiro da Senhora da Oliveira e os açougues, com umas
insígnias injuriosas", sobre a qual já muito escrevemos na série de textos
sobre a servidão de Cunha e Ruílhe.
Notícia e descrição da freguesia de São
Paio de Ruílhe.
Está esta freguesia na província do Minho,
Arcebispado de Braga Primaz das Espanhas. É comarca de Guimarães e do mesmo
termo, ainda que fique no meio do termo de Barcelos, por ser esta freguesia e a
de São Miguel da Cunha dadas antigamente pelos vereadores da vila de Barcelos,
de cujo termo eram, ao termo de Guimarães, para estas duas freguesias
exercitarem na dita vila aquela ignominiosa acção de irem à dita vila, sete
vezes ao ano, varrerem o terreiro da Senhora da Oliveira e os açougues, com
umas insígnias injuriosas, conduzidos três homens, que iam cada vez, cuja
obrigação pertencia antigamente aos vereadores da vila de Barcelos, em castigo
de fraquearem naquela insigne batalha de Ceuta, cuja fraqueza supriram os
soldados de Guimarães, e por isso iam àquela vila os vereadores de Barcelos
exercitar aquela injuriosa acção, e por não haver naquela vila quem quisesse
servir a ocupação de vereador, deram estas duas freguesias para o termo de
Guimarães, com obrigação de exercitarem a dita acção, o que fizeram pelo
decurso de alguns trezentos anos. Opuseram-se as ditas freguesias com
requerimentos a Sua Real Majestade, o senhor Dom João quinto, que Deus tem,
que, informado da verdade, por seu real decreto, no ano de mil setecentos e
quarenta e dois, foi servido mandar se fizesse perpétuo silêncio nos
requerimentos e não houvesse mais requerimento algum como consta do mesmo
decreto, que em meu poder se acha, e se não exercitasse mais semelhante acção.
Pertence esta freguesia a Sua Real
Majestade.
Tem esta freguesia setenta e oito fogos ou
vizinhos. Tem, pessoas de sacramento, e menores, duzentas e trinta e oito.
Está situada num vale plano e dela se
descobre a cidade de Braga, que dista uma légua, ainda que não toda.
A igreja desta freguesia está no meio
dela. Tem sete lugares: Além do Rio, Este, Vila, Cacascelos, Ruílhe, Pecelar e
Igreja.
São paio é orago desta freguesia. Tem três
altares, um mor e dois colaterais. No maior está São Paio, de vulto, e o Menino
Jesus e o Sagrado Viático. Nos colaterais, à parte do Evangelho, está a Senhora
do Rosário, à parte da Epístola, está Santa Luzia, imagem de muitos milagres.
Tem a irmandade de São Sebastião, que fica no mesmo altar de Santa Luzia, tema
da mesma Santa e a de Nossa Senhora do Rosário.
O pároco desta igreja é abade,
apresentação do ilustríssimo e excelentíssimo senhor donde do redondo. Terá de
renda trezentos mil réis. Não tem capela ou ermida alguma.
Produz esta freguesia muito milho grosso,
por serem planas as terras, com algumas levadas do rio, vinho em abundância.
Tem muitas devesas de lenha de carvalho, que os lavradores levam jucada à
cidade de Braga, com que bem se remedeiam
Serve-se esta freguesia do correio da cidade
de Braga, por ficar distante uma légua.
Dista da cidade de Braga uma légua,
capital deste Arcebispado, e da cidade de Lisboa, cinquenta e seis léguas.
Nos mais interrogatórios não há que dizer.
A esta freguesia cercam dois montes
pequenos e limitados, um à parte do Norte, outro do Sul, que produzem mato e
devesas de carvalho, e muita caça de coelhos e algumas poucas perdizes. Não têm
coisa digna de memória. Fica um entre esta freguesia e São Miguel de Cunha e do
Sul entre esta e o Salvador de Tebosa.
Passa por esta freguesia um rio, que se
chama o rio Este, por ter seu princípio acima da cidade de Braga, onde chamam
carvalho de Este.
O seu nascimento é limitado, porém
aumenta-se daí em diante, no tempo do Inverno é caudaloso, porém no Verão traz
pouca água nesta freguesia, por os lavradores se aproveitarem até ao seu
nascimento, e tem havido anos que de todo seca.
Entra neste rio outro que vem da veiga do
Penso, e a ele se une na freguesia de Lomar. É de curso quieto, por correr
plana a terra por onde passa.
É a sua corrente do Nascente ao Poente.
Cria peixes em abundância, como são
barbos, trutas, bogas, escalos, com a circunstância de serem os mais gostosos
que se criam na província. Em mais abundância são escalos.
Pesca-se nele em todo o tempo do ano, sem
haver particularidades.
Ao redor dele tudo é cultivado de campos,
com algumas levadas que nesta freguesia os regam e limam. Tem alguns arvoredos
em partes, como são carvalhos e salgueiros,
Sempre se apelidou o rio de Este, por ter
seu nascimento onde chamam o Carvalho de Este, acima da cidade de Braga uma
légua, e não há notícia tivesse em tempo algum outro nome.
Vai este rio entrar no mar a Vila do
Conde. Porém, primeiro se junta ao rio Ave, junto a Vila do Conde.
Não é navegável, por não ter cabedal para
isso, e ter juntamente muitos aludes de moinhos e azenhas.
Tem nesta freguesia uma ponte de pau, por
onde passam carros de uma para outra parte em todo o baixo da freguesia.
Tem nove engenhos negreiros, um lagar de
azeite, este rio.
Todas as levadas que nele há são livres
para seus donos, só uma desde o primeiro de Maio até Setembro não vai aos
campos sem licença do dono de um moinho que fica da parte de baixo.
Tem este rio sete léguas desde o seu
nascimento até entrar no mar, passa por o redor da cidade de Braga e vem
continuando por aldeias.
São estas as notícias que posso dar desta
freguesia e por verdade me assino. S. Paio de Ruílhe, 3 de Abril de 1758.
O abade António Machado da Silveira
O vigário de Tebosa, Manuel Ferraz da
Mota.
O Abade de Cunha, Manuel António Coelho
“Ruílhe”, Dicionário
Geográfico de Portugal (Memórias Paroquiais), Arquivo Nacional-Torre
do Tombo, vol. 32, nº 173, p. 1051 a 1056.